O pão de queijo é o verdadeiro “pão de cada dia” em Paracatu, na Região Noroeste de Minas Gerais. Na companhia de café quentinho ou com leite, a saborosa quitanda, um dos símbolos gastronômicos do estado, ganha a preferência da maioria (70%) da população, conforme pesquisa local, superando o pãozinho francês ou de sal.
Em 2015, o “modo de fazer” do alimento tradicionalmente presente às mesas foi registrado como Patrimônio Imaterial do município, o mesmo ocorrendo, três anos depois, com mais 11 iguarias artesanais, incluindo as preparadas em quilombo. “Elas representam um bom pedaço da nossa história, da nossa cultura”, resume a quitandeira e empreendedora Vânia Lima Macedo Borges, de 45 anos.
Na lista dos produtos destacados pelo “modo de fazer”, encontram-se alguns com origem nos tempos coloniais e de nomes bem curiosos, a exemplo da desmamada, bolo com cara de pudim e que tem coco na massa.
“O modo de fazer, a combinação de ingredientes e receitas próprias garantem o diferencial das quitandas de Paracatu. O pão de queijo, por exemplo, é feito com massa fria, sem uso de água, portanto, não escaldado. Já a massa da empadinha, coberta com a capa fina, está mais próxima do empadão goiano”, conta o secretário municipal de cultura e turismo, Márcio Souto.
Orgulhoso da originalidade dos tesouros culinários, Souto explica: “Com a proximidade de Goiás, há influências do estado vizinho na rica culinária daqui e em outros setores do patrimônio cultural, como a arquitetura, bem próxima da cidade de Goiás Velho.” O açafrão tem grande uso nas comidas, enquanto, em outras regiões mineiras, o colorau fica em primeiro lugar no gosto popular.
Para turbinar a produção das quitandas, a prefeitura, em parceria com o Sebrae (parte técnica e consultoria) e com as quitandeiras, detentoras do saber, trabalha para a concessão do selo de Indicação Geográfica, garantia de que um produto é originário do local.
O próximo passo se dará junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) para registro da marca das quitandeiras. “A certificação de mestres e mestras e a criação de um selo vão agregar valor aos produtos e fortalecer a gastronomia”, prevê o secretário.
Sinta-se em casa
Distante 500 quilômetros de Belo Horizonte e 230 de Brasília (DF), quase na divisa com Goiás, a cidade de Paracatu prima pela hospitalidade. Tem o jeito mineiro de receber os visitantes e, claro, oferece comidas típicas de deixar saudade.
Na Casa Paracatu (Rua Américo Macedo, 10, Centro) – prédio onde funcionou o Automóvel Clube e, restaurado, tornou-se equipamento cultural municipal –, o visitante vai encontrar as quitandas reconhecidas como Patrimônio Imaterial do município. A restauração do bem ocorreu, desde a desapropriação, graças aos recursos municipais e também do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio da promotora de Justiça da comarca, Mariana Duarte Leão.
Perto da entrada da edificação, vê-se a loja da Associação das Quitandeiras de Paracatu (Aquip), entidade oficializada há dois anos a partir de um grupo nascido há cinco. A presidente da Aquip, Fernanda Jordão Oliveira, formada em gastronomia, conta que a tradição das quitandas se fortaleceu, entre outros aspectos, com a necessidade das mulheres de ajudar a família, quando muitos homens partiam para o garimpo.
Derrete na boca
Segurando um prato com bolachas de arrozina (farinha de arroz), que derretem na boca, Fernanda aprendeu muito do que sabe com a mãe, dona Ione Guimarães Jordão.
“A loja da Aquip foi aberta em junho, em espaço cedido pela Prefeitura de Paracatu”, diz a presidente da Aquip, citando o nome das nove pessoas, entre homens e mulheres, que fazem parte da associação. São eles e elas: Fernanda Jordão Oliveira, Salmon Jacinto de Melo, Liliane Guimarães Rabelo, Vinícius Wanderley Caldeira Oliveira, Simone de Fátima Santana Soares, Vânia Lima Macedo Borges, Vinícius Silva Botelho Santos, Zilá Alves Pereira, Arlete Alves Duarte Carvalho e Maria dos Reis.
O melhor de conhecer a loja da Aquip está em poder saborear as delícias artesanais no bem cultural preservado. Sente-se, com clareza, o genuíno gostinho da história iniciada no século 18.
Nas paredes do estabelecimento, o visitante lê os nomes das 12 quitandas registradas como Patrimônio Imaterial e, no bate-papo com as quitandeiras, conhece um pouco das origens de cada produto. No caso da desmamada, há várias versões: uma delas é que, inicialmente, era um mingau cozido à base de farinha, leite e açúcar para desmamar as crianças.
Doces memórias
Ao provar a desmamada, o repórter tem a impressão de voltar duas décadas em sua vida, seguindo os passos do personagem criado pelo francês Marcel Proust (1871-1922) na monumental obra “Em busca do tempo perdido”. Guardadas as devidas proporções de tempo, espaço e sabor, o bolo de Paracatu, nesse momento, transforma-se na “madeleine” de Proust. Assim, o repórter se lembra de dona Lazy Ulhoa Bijos (já falecida), que morava em uma das casas mais antigas da cidade.
Professora de arte culinária, em 2004, dona Lazy mostrou à equipe do EM um caderno datado de 1936, herdado da avó, com uma série de receitas, incluindo a desmamada – ou “dismamada”, como pronunciava mineiramente. Rainha da sua cozinha, a qual considerava sua “grande paixão”, a paracatuense dizia que a “desmamada é um pudim para o lanche, que derrete na boca”. A tradição se mantém com a filha Dália Gabriela.
Manoel sem camisa
E de onde vem o nome Mané Pelado? Em forma quadrada ou enrolada na folha de bananeira, a curiosa quitanda tem seu nome derivado, obviamente, de um homem chamado Manoel. Como a imaginação do povo não tem limite, contam que uma mulher goiana fazia a quitanda e mandava o marido, o tal Manoel, vender na rua. E ele o fazia sem camisa. Certo ou errado, melhor achar que a folha de bananeira “cobriu” o homem… e assim ficou para sempre.
Na loja da Casa Paracatu, algo aconteceu como se fosse passe de mágica. Bastou falar no Mané Pelado com a atendente para a quitandeira Zilá Alves Pereira, ao lado da neta Ana Luíza, de 10 anos, entrar. Chegou carregando uma gamela de madeira com várias unidades, ainda quentes, enroladas na folha de bananeira.
Professora aposentada, Zilá, que tem três filhos e sete netos, faz também o bolo de domingo, a desmamada e a queijadinha. “Minha mãe, Domingas, me ensinou a preparar os alimentos e mostrou que isso também é história e cultura”, contou com alegria.
No recheio, amor
Mestra no seu ofício, Vânia Lima Macedo Borges, de 45 anos, casada há 21 com o artesão Tarcísio Esteves Borges, apresenta, com o maior orgulho, suas empadinhas recém-tiradas do forno. Simpatia em pessoa, ela agradece os elogios pelo seu trabalho e revela que o conhecimento foi adquirido em família, com a observação constante, desde criança, da movimentação na cozinha.
“Lá em casa, éramos seis filhos e sempre gostei de ver o serviço das quitandeiras”, recorda-se Vânia, que tem serviço de entrega dos seus produtos.
Ao provar a empadinha, o visitante sente logo a diferença das demais experimentadas até hoje. A capa finíssima conduz diretamente “ao céu da boca” o suculento recheio temperado por uma pimentinha.
Ao lembrar que participou de eventos no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, Vânia traz um brilho maior nos olhos. “Sempre gostei de cozinhar”, enfatiza ao oferecer, em seguida, uma coxinha crocante e um pastel bem sequinho, frutos, certamente, de técnica e carinho pela arte culinária.
Em trabalho na cidade, o técnico em sonorização Helton Abadio dos Reis, de Araxá, na Região do Alto Paranaíba, ouviu os comentários sobre a empadinha e foi conferir. “Bom demais!”, exclamou, para alegria de Vânia.
O contato com as quitandeiras abre as portas para o visitante querer saber mais sobre os primórdios da culinária de Paracatu. De acordo com a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, as receitas de Paracatu, que passam de geração a geração e atravessaram séculos, resultam da “vivência do povo, expressa por meio de saberes e ofício de pessoas com amor pela cozinha”.
Na cidade, as quitandas são feitas, principalmente, por mulheres, “reafirmando um costume e um conhecimento passado das mães às filhas, das avós às netas, das tias às sobrinhas”.
Com forte tradição na produção de quitandas, a cidade produz e consome, diariamente, mais pães de queijo do que pão francês – apenas um empreendimento do ramo fabrica mais de oito mil pães de queijo por dia, também informa a secretaria.
Influências diversas
Segundo o dossiê de reconhecimento como Patrimônio Imaterial, o “saber fazer” de cada quitanda está relacionado às influências de povos diversos, ao desenvolvimento local, às culturas agrícolas ali plantadas e aos produtos comercializados na região, construindo, portanto, os hábitos alimentares dos locais. “E têm um componente social importante nas mesas das famílias, nas reuniões comerciais e de trabalho ou nas festas nas quais são servidas.”
Indo mais além, é necessário conhecer a história da cidade, cujo povoado primitivo surgiu com a chegada das bandeiras de Felisberto Caldeira Brant e de José Rodrigues Fróis e a descoberta de jazidas de ouro e prata. Assim, surgiu o Arraial de São Luiz e Sant’Ana das Minas do Paracatu.
O título de Vila do Paracatu do Príncipe foi concedido por alvará-régio de dona Maria I, rainha de Portugal, em 20 de outubro de 1798. Em 1840, Paracatu foi elevada a cidade e se tornou a cabeça da Comarca de Paracatu, que incluía em seu território cidades como Uberlândia, no Triângulo Mineiro, e outras no Norte de Minas. Com rico acervo cultural, o núcleo central foi tombado (2010), pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Quintal das tradições
Em Paracatu, toda hora é hora de conhecer as tradições, como desfrutar um café colonial à sombra de árvores, no estilo bem do interior, em total comunhão com os sabores, a natureza e a cultura mineira. No Quintal da Angela, as quitandas são servidas perto de jabuticabeiras, goiabeiras, mangueiras e pés de graviola e cacau. “E a gente faz o suco natural das frutas”, conta Angela Resende, que une, no espaço, duas grandes paixões: as quitandas e o quintal.
Em uma manhã ensolarada, com o papo gostoso e muitas informações, os visitantes degustam bolos, biscoitos e outros alimentos preparados com esmero e arte. “Faço quitandas há mais de 30 anos. Já o quintal, onde trabalho em parceria com minha nora, Bruna Gonçalves, foi aberto há duas décadas”, conta Angela. O serviço deve ser precedido de reserva.
Certa de que “essência” da casa, no Bairro Paracatuzinho, está em oferecer o melhor às pessoas, servindo com toda atenção, Angela conta que sempre usa produtos de qualidade, buscando leite e manteiga “na roça”, o que, sem dúvida, eleva o charme do local.
Dialeto africano
Nas pesquisas para registro como Patrimônio Imaterial de Paracatu, os especialistas investigaram as origens das quitandas. Em uma delas, encontraram a palavra “kitanda”, no dialeto africano quimbundo, com o significado de “tabuleiro no qual se expõem as mercadorias diversas”. Dessa forma, ela se tornou referência de feiras e mercados livres.
Serviço
Associação das Quitandeiras de Paracatu (Aquip)
@aquipparacatu