O colapso da agricultura em Gaza no epicentro da crise humanitária

Foto: United Nations – Shareef Sarhan

Até 2023, Gaza era um retrato de potencial e vida: olivais, laranjais, morangos em estufas, hortas irrigadas. Hoje, essas mesmas terras são zonas proibidas, estragadas pelos bombardeios, interditadas por bloqueios ou soterradas sob escombros. Quando a terra deixa de poder produzir, como segue a vida?

Em Gaza, a agricultura já foi muito mais que subsistência, era motor econômico, fonte de identidade e segurança alimentar. Estima-se que antes da escalada atual, o setor agrícola respondia por até 10 % do PIB local (dados de organismos internacionais).

As culturas predominantes incluíam frutas cítricas (laranja, limão), morangos, oliveiras (para azeite), além de hortaliças, trigo e flores.

Boa parte da produção era consumida internamente; acredita-se que cerca de 40 % da extensão territorial da Faixa de Gaza era dedicada à agricultura.

Além disso, centenas de milhares de famílias dependiam direta ou indiretamente da agricultura, seja como produtores, em cadeias de insumos ou no comércio local e exportações regionais.

Relatórios recentes da FAO / UNOSAT revelam que 98,5 % das terras agrícolas de Gaza estão atualmente danificadas, inacessíveis ou ambas, restando apenas 1,5 % de cropland utilizável (aproximadamente 232 hectares).

  • Em setembro de 2024, já se estimava que 67,6 % dos campos agrícolas estavam danificados — sendo 71,2 % de pomares, 67,1 % de culturas de campo e 58,5 % de hortaliças.
  • Em maio de 2025, a FAO advertiu que menos de 5 % das terras agrícolas permanecem disponíveis para cultivo.
  • Dados anteriores apontam que já em abril/maio de 2025 mais de 80 % da área agrícola total (12.537 há de 15.053 ha) estava danificada ou inacessível.

Esses números indicam uma destruição estrutural e sistêmica do setor agrícola.

Cerca de 44,3 % das estufas foram danificadas de forma significativa.

Os pomares, incluindo oliveiras e frutíferas, estão entre os mais afetados; grande parte das árvores foi destruída ou arruinada pela ação de tanques e explosões.

Na zona de Al-Qarara, local de um banco de sementes que mantinha variedades adaptadas localmente, 60 % das terras agrícolas foram niveladas, e poços, reservatórios e estruturas hidráulicas foram destruídos.

Com o banco de sementes destruído, a base genética local foi dizimada, agricultores ficaram sem fontes próprias de sementes adaptadas e ficaram dependentes de insumos externos.

A pecuária foi quase inteiramente aniquilada: estima-se que 96 % do rebanho bovino foi perdido, por morte direta ou pela falta de alimento e água.

O setor de pesca, historicamente vital para a segurança alimentar costeira, também entrou em colapso: barcos foram destruídos, áreas marítimas tornaram-se zonas de combate e restrições navais foram impostas.

Sistemas de irrigação, poços hidráulicos, canais, reservatórios e estações de bombeamento foram danificados ou destruídos em grande escala.

Adicione-se a isso a contaminação do solo por explosivos, metais pesados e resíduos de guerra, tornando certos terrenos impraticáveis mesmo após remoção de escombros.

Em 2025, órgãos como FAO, WFP e UNICEF alertaram que Gaza entrou em situação de fome generalizada, com centenas de milhares de pessoas em risco iminente. Mais de 39 % da população relatou que passou dias sem ter o que comer. A produção local quase zerada, aliada a bloqueios de importação de alimentos e insumos, transformou praticamente toda a população em dependente de ajuda humanitária externa.

As consequências nutricionais são devastadoras: a desnutrição infantil crônica pode gerar danos irreversíveis ao crescimento físico, à imunidade e às funções cognitivas, efeitos que persistem por gerações.

O ataque sistemático ao sistema de produção agrícola ultrapassa o aspecto econômico. É um ataque ao direito humano à terra, ao alimento e à autonomia. Reduzir Gaza à mera receptora de ajuda internacional — sem restaurar sua capacidade produtiva — aprofunda o ciclo de dependência, fragilidade e humilhação.

Onde ainda é possível, em recantos remanescentes, agricultores arriscam retomar cultivos com sementes mínimas, improvisando ferramentas, irrigação rústica e tutela improvisada contra ataques.

Em áreas de menor incidência de conflito, alguns esforços de recuperação já são visíveis, ainda que fragilizados.

Relatórios da ONU estimam que a remoção de escombros pode levar uma década, enquanto recuperar a fertilidade do solo e infraestrutura completa pode demandar até 25 anos.
Mas o desafio vai além de reconstruir estruturas físicas: exige segurança (remoção de minas e explosivos), garantia de acesso humano e liberdade produtiva, assistência técnica, financiamento contínuo, redes de sementes locais e decisões políticas sobre uso da terra envolvidas.

Projetos de reconstrução bem-sucedida dependem de priorizar a reativação das cadeias alimentares locais, visando autonomia nutricional, e não simplesmente importar alimentos como paliativo eterno.

A transformação de Gaza, de terra fértil a território interditado, é uma tragédia que se projeta para além da destruição material. É uma ferida na identidade, na dignidade e na soberania de milhões. Reerguer Gaza não será apenas plantar de novo — será restaurar o laço entre as pessoas e a terra, entre o alimento e a liberdade.

Mas esse renascimento exige muito mais que boa vontade: exige compromisso contínuo da comunidade internacional, proteção efetiva diante do conflito, liberação humanitária irrestrita, investimento de longo prazo e, acima de tudo, o respeito ao direito humano básico de produzir e se alimentar.

Miguel Daoud

*Miguel Daoud é comentarista de Economia e Política do Canal Rural


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