Emendas Parlamentares e a ‘desarmonia’ dos Poderes

O presidencialismo brasileiro é minoritário. Sob esse modelo, o partido do presidente nunca tem maioria no Congresso, o que obriga-o a compor coalizões, o que levou o politólogo Sérgio Abranches a classificá-lo como “Presidencialismo de Coalizão” em seu célebre artigo de 1988. Nesse contexto, as emendas parlamentares, antes distribuídas diretamente pelo governo, serviam como meio de barganha para angariar apoio à coalizão governista — principalmente do baixo-clero do Congresso, que mantém uma relação clientelista com suas bases. Eram, assim, um instrumento de governabilidade.
O modelo trouxe estabilidade nas décadas de 90 e 2000, mas o avanço da fragmentação da Câmara e o fortalecimento dos partidos do “centrão” aumentaram sobremaneira os custos de administração dessas coalizões, prejudicando a posição do Executivo. Os ganhadores desse processo foram os estratos mais fisiológicos e clientelistas do Congresso que, com o tempo, perceberam que não precisavam mais viver a reboque do governo: era o governo que precisava viver a reboque deles.
Esse processo de tomada de consciência e, em seguida, tomada de poder, resultou no que ficou conhecido como “Revolução do Baixo-Clero”, que teria sua “queda da Bastilha” em 2015, com a eleição de Eduardo Cunha, e seu “18 de Brumário”, em 2020, com o novo arranjo das emendas.

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Não é coincidência, portanto, que esse arranjo tenha sido criado pelo ex-presidente da Câmara, Arthur Lira, e reciclado pelo atual, Hugo Motta, dois pupilos de Cunha. Tanto Lira como Motta foram integrantes da chamada “Tropa de Choque”, que defendia o ex-presidente da Câmara na Comissão de Ética em 2015, cuja derrota no processo que enfrentava motivou a abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff.
Também não é coincidência, aliás, que o partido do presidente da República não elege um presidente Câmara desde 2011, há quase 15 anos, quando elegeu-se Marcos Maia (PT-RS). Desde então, o baixo-clero foi fundamental para a queda de Dilma, sentou ao lado do rei no interregno Temer e tomou o trono em Bolsonaro. A tomada do controle das emendas pelo Congresso, por sua vez, é produto direto desse processo.
O arranjo atual remonta à aliança entre Bolsonaro e o centrão, que identificou um momento de grande fragilidade do Executivo e soube aproveitá-lo. O ex-presidente parece ter acreditado que as emendas eram parte acessória do quadro geral do governo e que, cedendo seu controle ao centrão, conseguiria o apoio necessário para tocar o que tinha como mais importante. Fez como quem deixa levarem os anéis para ficarem os dedos.
O montante repassado por emendas, que já havia quase dobrado no primeiro ano de governo Temer, quase triplicou no segundo ano de governo Bolsonaro (saltando de 13,5 bi a 35,9 bi), quando teve início o orçamento secreto. Ocorre que, sem o controle das emendas, o Executivo se enfraqueceu perante o Congresso, pois perdeu seu poder de barganha e, assim, um de seus principais instrumentos de governabilidade. Na mesma medida mas em sentido diverso, o baixo-clero se empoderou perante o Executivo, posto que passou a controlar a distribuição dos recursos e, assim, os meios para garantir suas reeleições.
Daí em diante, o Congresso passou a cobrar um preço cada vez mais caro ao governo, que se viu paulatinamente loteado ao centrão, enquanto o presidente berrava contra a Globo, a OMS e o STF, sem perceber que já não governava mais — tal qual Lear, que não era mais Rei. Quer dizer, foram-se os anéis, os dedos, as mãos e tudo mais que poderia ser levado.
E não é como se Executivo não carregasse culpa alguma pelo cenário atual. Em verdade, creio que parte fundamental do problema tenha sido gestada nos governos Lula I e II. O governo também peca pelo telhado de vidro. Repassou, via Ministério das Cidades, 143 milhões à prefeitura de Araraquara (SP) no ano passado, por exemplo. A cidade era governada por Edinho Silva (PT-SP), atual candidato à presidência do PT, e o repasse foi criticado pela fragilidade de seus critérios técnicos e por ter se dado 24h após ligação do presidente ao ministro Jader Filho (MDB-PA), justo em um ano de eleição municipal
Ainda assim, não há dúvidas sobre quem é o perdedor deste arranjo. Sem o controle das emendas, o governo tem ainda mais dificuldade para arcar com os custos de administração de sua coalizão, principalmente em relação ao centrão e seus correlatos. O que se tem, no fim das contas, é que parte relevante do Congresso deixou de precisar do Executivo, o que, por óbvio, é pior para o Executivo.
A reversão do quadro atual é assunto ainda mais complexo. É como tentar pôr a pasta de novo dentro do tubo, para utilizar uma expressão cara à ex-presidente Dilma. Uma decisão do STF, como a do ministro Dino em março, pode até ajudar, mas não resolve, e ainda corre-se o risco do efeito backlash – como ocorreu ano passado com o “pacote anti-Supremo”, impulsionado logo após uma decisão da Corte sobre emendas.
Dois elementos parecem-me essenciais para tentar reverter esse quadro: de início, um Executivo muito fortalecido, capaz de fazer frente ao baixo-clero e de se utilizar de sua popularidade para abaixar os custos de administração de sua coalizão — o que parece difícil em um Brasil em que o capital político de um presidenciável depende sempre da rejeição ao outro presidenciável e, assim, nunca vai muito além de metade da nação; e depois, uma regra de transição lenta, gradual e segura, que seja capaz de aplacar os descontentamentos inevitáveis do processo de reversão. Até lá, qualquer governo permanecerá mais de direito do que de fato.
* Jorge Henrique Rosal é advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, e associado Livres
Esta publicação é uma parceria da Jovem Pan com o Livres
O Livres é uma associação civil sem fins lucrativos que reúne ativistas e acadêmicos liberais comprometidos com políticas públicas pela ampliação da liberdade de escolha

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