Por muito tempo, o contencioso foi visto apenas como um ônus inevitável: um passivo a ser contabilizado, monitorado e reduzido sempre que possível. Essa leitura limitada fez com que muitas empresas deixassem de enxergar na litigiosidade um campo fértil de inteligência capaz de transformar provisões em decisões estratégicas e reforçar a governança corporativa.
Hoje, em um ambiente em que investidores, órgãos reguladores e conselhos de administração exigem previsibilidade e transparência, a forma como a companhia administra suas contingências tornou-se um termômetro da maturidade empresarial. O jurídico passou a dialogar com controladoria, auditoria e compliance, oferecendo uma visão integrada de riscos e oportunidades.
Do passivo ao ativo de gestão
O CPC 25, convergente ao IAS 37 das normas internacionais de contabilidade (IFRS), inaugurou uma mudança cultural. Não basta lançar valores em balanço: é preciso justificar probabilidades de perda com base em evidências consistentes. Esse padrão reforça o nível de disclosure e a necessidade de documentação robusta para dar suporte às informações apresentadas ao mercado.
Na prática, experiências recentes mostram que empresas que analisam clusters de ações trabalhistas com alta taxa de improcedência conseguem fundamentar ajustes seguros de provisão e liberar capital antes imobilizado. Em paralelo, a análise das causas raiz das demandas, como políticas internas desatualizadas, fragilidades em procedimentos de RH ou contratos mal calibrados, fornece insumos valiosos para mitigar riscos futuros. É aqui que o contencioso deixa de ser retrato do passado e passa a guiar decisões estratégicas.
Impacto contábil e financeiro
Sob CPC 25 e IAS 37 (IFRS), o desafio não é apenas contabilizar, mas qualificar, revisar e ajustar provisões de forma consistente. Esse processo abre espaço para estratégias jurídicas que conversam diretamente com finanças: reduzir provisões com segurança melhora liquidez, fortalece o EBITDA e amplia a previsibilidade diante de investidores e credores.
Fundos e analistas já observam como companhias tratam suas contingências. Em due diligence ou auditorias, não é raro que ajustes inesperados de provisão inviabilizem operações de fusões, aquisições ou emissões no mercado de capitais. A forma como o contencioso é tratado deixou de ser detalhe técnico: é elemento central na atratividade e no valuation.
O caso das carteiras trabalhistas
Em carteiras trabalhistas de volume, a conexão entre jurídico e contabilidade é ainda mais sensível. A inconsistência na classificação de risco pode inflar provisões em centenas de milhões, distorcendo EBITDA, pressionando covenants bancários e até comprometer valuation em operações de M&A.
A calibragem adequada exige integrar jurídico e controladoria por meio de jurimetria de êxito. Isso significa usar o histórico de decisões, como taxas de improcedência, reversões em segunda instância, perfil das varas e TRTs, para parametrizar probabilidades. Essa prática confere maior precisão aos cálculos, libera capital antes imobilizado e fortalece a credibilidade da companhia perante auditores, investidores e credores.
O olhar do CFO e do Conselho
Para o CFO, contingências não são apenas notas explicativas, mas fatores que impactam diretamente o rating de crédito, o acesso a financiamento e a narrativa financeira da companhia. Os Conselhos de Administração, por sua vez, exigem relatórios que conectem risco jurídico a métricas tangíveis como previsibilidade de caixa, margem operacional e reputação perante stakeholders.
Nesse cenário, o jurídico bem estruturado se torna tradutor: converte a complexidade dos litígios em linguagem financeira, dialoga com auditores e reforça a credibilidade das informações reportadas. Isso reduz a probabilidade de ajustes imprevistos e fortalece a confiança do mercado.
Governança e auditoria como diferenciais competitivos
A integração entre jurídico e auditoria, interna e externa, é passo essencial. Compartilhar metodologias de cálculo, premissas de risco e critérios de clusterização fortalece a posição da empresa diante do mercado. Mais do que cumprir exigências regulatórias, esse movimento evita fragilidades que podem comprometer operações estratégicas.
Na prática, empresas que integram governança e contencioso transmitem ao mercado uma mensagem de maturidade: estão preparadas para gerir riscos de forma transparente, reduzir volatilidade e antecipar ajustes necessários. Isso não é apenas proteção, é diferencial competitivo.
Esse alinhamento, porém, não se restringe ao jurídico interno. Ele exige que os escritórios de advocacia parceiros adotem a mesma lógica na elaboração de seus relatórios. Não basta classificar riscos de forma genérica; é preciso traduzir probabilidades jurídicas em métricas contábeis que dialoguem com CPC 25, IAS 37 e IFRS. Quando jurídico interno, escritórios externos, auditorias e conselhos falam a mesma língua, a companhia transmite consistência e reforça a credibilidade de suas demonstrações financeiras.
E aqui surge uma reflexão inevitável: será que os parceiros externos das companhias estão preparados para entregar relatórios que dialoguem com o board e com o mercado?
O critério de provisionamento, ainda que observe o CPC 25 e o IAS 37, não é estático. Ele requer conhecimento contábil aprofundado, domínio sobre o comportamento da carteira e capacidade de acompanhar mudanças decorrentes de análises preventivas. Cada ajuste impacta diretamente os números e, por isso, deve ser lido não apenas como obrigação regulatória, mas como ferramenta de gestão que antecipa riscos e projeta consequências. É nesse movimento que o contencioso trabalhista deixa de ser passivo imutável e se consolida como ativo estratégico de governança, sustentabilidade financeira e geração de valor empresarial.